Talvez em algum momento de sua vida você já tenha refletido sobre como a tecnologia tem influenciado a vida humana no decorrer do tempo. É natural que já tenha feito questionamentos sobre: como as pessoas se comunicariam sem telefone, internet ou aparelhos celulares? Como se transportariam sem bicicletas, carros ou aviões? Como se tratariam de doenças ou se manteriam saudáveis sem o uso de medicamentos modernos? Como se alimentariam sem alimentos industrializados? Através destes questionamentos é possível observar que, de fato, a tecnologia trouxe diversos benefícios e comodidades para a vida humana, porém nem sempre esses benefícios ocorrem de forma plena, sem algum prejuízo (coletivo ou individual) associado. Tomemos como primeiro exemplo os meios de transporte. Apesar de a bicicleta estar ressurgindo como uma excelente forma de transporte urbano alternativo, automóveis e motocicletas estão entre os meios de transporte mais comuns, trazendo por um lado, o conforto, a praticidade e a comodidade para o usuário, mas por outro lado, uma série de prejuízos no âmbito coletivo, como: poluição, engarrafamentos, aquecimento local e global, sem falar dos conflitos mundiais alimentados pela disputa pelo petróleo, dentre outros impactos.

Agora tomando como exemplo a alimentação, será que seria diferente? Os benefícios das implicações tecnológicas na alimentação, associado à economia globalizada e ao modelo capitalista de produção e consumo, superam os malefícios gerados? Ao longo do tempo, foram tantas as mudanças no nosso sistema alimentar que chegamos ao ponto de nos questionar se o que estamos comendo é realmente comida de verdade.

Essas mudanças no padrão alimentar, ocorridas principalmente em países desenvolvidos e emergentes, como o Brasil, acumulam uma série de prejuízos individuais e coletivos para a sociedade. No plano individual, doenças antes associadas ao processo de envelhecimento, hoje atingem importante número de pessoas adultas e jovens. No plano coletivo, a ameaça à biodiversidade e aos recursos naturais, as injustiças sociais e violações de direitos humanos também estão relacionadas a esse atual padrão de alimentação, pois, uma alimentação saudável é derivada de um sistema alimentar saudável e sustentável.Vivemos nesse último século, e de forma mais intensa nos últimos 50 anos, uma grande mudança na alimentação humana. A produção, conservação e o preparo dos alimentos, que eram feitos predominantemente no ambiente doméstico, agora se concentram em maior parte no setor industrial que, articulado ao setor econômico, publicitário e ainda aos modos de vida das sociedades urbanas contemporâneas, estimulam cada vez mais o consumo de alimentos industrializados e processados. Os alimentos in natura ou minimamente processados (como mandioca, arroz, feijão, cuscuz, legumes e verduras) consumidos com maior frequência por gerações passadas, vem sendo menos consumidos quando comparados a alimentos industrializados, prontos para consumo e com maior grau de processamento. As refeições preparadas e compartilhadas com a família, amigos/as ou em grupos parecem ser cada vez mais incomuns, sendo frequentes as refeições rápidas, no ambiente de trabalho, em frente a TV ou ao lado do celular. 

Comida de verdade e um sistema alimentar saudável

Durante a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional realizada em Brasília em 2015, sociedade civil e governo debateram sobre os avanços e desafios no âmbito da Segurança Alimentar e Nutricional – SAN e buscaram reconstruir e revitalizar a comida de verdade como forma de conquistar a segurança e a soberania alimentar.

Mas e o que seria a comida de verdade? Seria qualquer alimento não industrializado? Aquele alimento que atende perfeitamente nossas necessidades nutricionais? Ou seria mais do que isso? Michael Pollan, um jornalista norte-americano que se tornou famoso por suas obras literárias sobre a alimentação moderna, diz que “comida de verdade não entra pela janela do carro”, se referindo aos fast-foods comprados em drive-thrus. Ele diz ainda que não deveríamos comer nada que nossos avós não reconheceriam como comida, referindo-se à mudança no padrão alimentar entre as gerações. A comida de verdade é aquela que atende não apenas as nossas necessidades nutricionais, mas também nossas demandas psicossociais, culturais e às do meio ambiente como um todo.

O Brasil vem recebendo uma série de elogios por representantes de diversas partes do mundo, inclusive do próprio Michael Pollan, pela forma como vem sendo estabelecidas as diretrizes nacionais a respeito da alimentação e nutrição. A ideia de que uma alimentação saudável deriva de um sistema alimentar saudável e sustentável ganha força dentro da Política Nacional de Alimentação e Nutrição e, como também podemos ver, nas orientações estabelecidas na 2ª edição do Guia Alimentar para População Brasileira(external link). Enquanto países como os Estados Unidos abordam a alimentação sob um aspecto punitivo – reduzindo-a a somente a seu aspecto nutricional, enfatizando sua relação com doenças e o aspecto clínico-laboratorial, desconsiderando seu contexto sociocultural – o Brasil procura fazer o contrário. A estratégia brasileira tem se voltado ao incentivo a refeições equilibradas, resgatando o valor das culinárias regionais e a escolha por alimentos in natura ou minimamente processados e provenientes de modelos ambiental e socialmente sustentáveis. Assim, o Brasil busca articular os diversos setores envolvidos na garantia de uma alimentação saudável, elaborando diretrizes não-focadas em recomendações de nutrientes e calorias para perda de peso e buscando falar de alimentação adequada e saudável sem utilizar ícones alimentares (como a pirâmide alimentar).

Como forma de expressar o contexto plural e coletivo que a alimentação e nutrição vem (e deve continuar) sendo tratada em nosso país, segue um trecho retirado do Manifesto da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional à Sociedade Brasileira sobre Comida de Verdade no Campo e na Cidade, por Direitos e Soberania Alimentar:

A comida de verdade é salvaguarda da vida. É saudável tanto para o ser humano quanto para o planeta, contribuindo para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Garante os direitos humanos, o direito à terra e ao território, a alimentação de qualidade e em quantidade adequada em todo o curso da vida. Respeita o direito das mulheres, a diversidade dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana/ povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, demais povos e comunidades tradicionais e camponeses, desde a produção ao consumo. Protege e promove as culturas alimentares, a sociobiodiversidade, as práticas ancestrais, o manejo das ervas e da medicina tradicional, a dimensão sagrada dos alimentos.

Comida de verdade começa com o aleitamento materno. Comida de verdade é produzida pela agricultura familiar, com base agroecológica e com o uso de sementes crioulas e nativas. É produzida por meio do manejo adequado dos recursos naturais, levando em consideração os princípios da sustentabilidade e os conhecimentos tradicionais e suas especificidades regionais. É livre de agrotóxicos, de transgênicos, de fertilizantes e de todos os tipos de contaminantes.

Comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos, as tecnologias autóctones e suas inovações. É aquela que considera a água alimento. É produzida em condições dignas de trabalho. É socialmente justa. Comida de verdade não está sujeita aos interesses de mercado.

Comida de verdade é caracterizada por alimentos in natura e minimamente processados em detrimento de produtos ultraprocessados. Precisa ser acessível, física e financeiramente, aproximando a produção do consumo. Deve atender às necessidades alimentares especiais. Comida de verdade é aquela que é compartilhada com emoções e harmonia. Promove hábitos alimentares saudáveis no campo, na floresta e na cidade."

Comida de verdade no país do agronegócio

Apesar de avançarmos nas orientações alimentares, que acontece a nível coletivo e individual, ainda temos dificuldade na produção da comida de verdade. Uma das principais causas é o grande incentivo dado ao agronegócio que produz uma enorme quantidade de alimentos/commodities e não alimentam a população brasileira. A comida de verdade é produzida principalmente pelo pequeno agricultor. Ele enfrenta dificuldades para se manter e produzir o alimento, tanto por questões de acesso a terra e incentivo (especialmente para cultivo sem agrotóxico) como por escoamento de sua produção, já que quando vende para atravessadores ele ganha muito pouco. E sabe o que isso tem a ver com alimentação saudável no âmbito coletivo e individual?

No âmbito coletivo, a produção de alimentos por pequenos agricultores não é tão expressiva quanto poderia ser; o acesso à comida de verdade é dificultado à população como um todo, pois, é mais fácil fazer compras em supermercados do que em feiras (sem contar nos maiores preços de alimentos in natura e/ou orgânicos em relação aos alimentos industrializados). Além disso, a produção de commodities agrícolas possui impactos ambientais e sociais em todo o mundo.

No âmbito individual, o acesso dificultado ao alimento produzido pelo pequeno agricultor, associado ao marketing abusivo e aos nossos modos de vida, especialmente nas grandes cidades, nos induzem a comer mais industrializados; as recomendações de preparar o próprio alimento como forma de evitar o consumo de industrializados, ficam dificultadas, pois, o tempo para cozinhar parecer faltar e muitos ainda culpam a saída da mulher do ambiente doméstico para o mercado de trabalho.

Mas diante desse cenário, quem poderia assumir a responsabilidade de cozinhar? Todo/as nós!

O que podemos fazer para seguir avançando?

É fundamental que passemos a enxergar a alimentação com toda a complexidade que ela possui e o ato de comer como um ato político. A comida de verdade, além de promotora de saúde, é parte de todo um sistema que ajuda a promover justiça social e harmonia entre indivíduos e o meio do qual fazem parte.

No âmbito coletivo é importante acompanhar e valorizar as políticas públicas que visam a produção de alimentos com responsabilidade socioambiental e o acesso a estes alimentos por toda a população.

No âmbito individual podemos optar por comprar alimentos diretamente dos produtores em feiras locais. O Mapa do IDEC(external link), por exemplo, é uma ferramenta elaborada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC e que mostra onde se encontram feiras de produtores orgânicos espalhadas nas mais diversas regiões pelas cidades brasileiras. Além da aquisição direta dos produtores, as práticas culinárias são fundamentais para a construção de um sistema alimentar justo e saudável, de forma que todo/as possam participar. Aprender a cozinhar e dividir as atividades domésticas com a família é uma forma de otimizar o tempo para preparar as refeições e evitar comer industrializados. A saída da mulher do ambiente domiciliar para o mercado de trabalho não é motivo de desculpas para continuar comendo alimentos industrializados, não é verdade? Então, mãos à obra! Fazer as compras da semana na feira e cozinhar em família é uma boa ideia.

Fonte: http://opsanrais.ning.com/blog/o-que-e-comida-de-verdade-e-qual-a-sua-importancia-individual-e-c